O art. 2º do Código de Processo Penal adotou o princípio da imediata aplicação da lei processual penal:
Art. 2º A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo, da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.
De acordo com esse princípio, os novos dispositivos processuais podem ser aplicados a crimes praticados antes de sua entrada em vigor. O que se leva em conta, portanto, é a data da realização do ato (tempus regit actum), e não a da infração penal. Veja-se o exemplo da Lei n. 11.719/2008, que criou a citação com hora certa no processo penal. Se uma pessoa cometeu o crime antes da entrada em vigor da referida lei, mas por ocasião de seu chamamento ao processo, o oficial de justiça certificou que ele estava se ocultando para não ser citado, plenamente possível se mostra a citação com hora certa. Importante também mencionar o exemplo da Lei n. 11.689/2008, que revogou o recurso do protesto por novo júri em relação às pessoas condenadas a 20 anos ou mais por crime doloso contra a vida, em que se firmou entendimento de que as pessoas que cometeram o crime antes de referida lei, mas que foram levadas a julgamento depois de sua entrada em vigor (quando já não existia o protesto por novo júri), não poderão requerer novo julgamento.
Na aplicação do princípio da imediata aplicação da lei processual não importa se a nova lei é favorável ou prejudicial à defesa. Com efeito, o art. 5º, XL, da Constituição Federal estabelece exclusivamente que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o acusado, dispositivo que, portanto, não se estende às normas de caráter processual. Assim, se uma nova lei, após a prática do delito, agrava a sua pena, não poderá atingir aquele fato anterior, ao passo que, se o novo dispositivo atenua a reprimenda, retroagirá para beneficiar o infrator. Já a lei processual, repita-se, leva em consideração a data da realização do ato, e não a do fato delituoso. Por isso, se uma nova lei passa a prever que o prazo para recorrer de certa decisão é de 5 dias, quando antes era de 10,aquele será o prazo que ambas as partes terão para a sua interposição — caso a decisão seja proferida já na vigência do novo regime. É evidente, contudo, que se a lei entra em vigor quando o prazo para o recurso já havia se iniciado, deverá ser admitido o maior deles.
De acordo com o art. 3º, da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal (Decreto-lei n. 3.931/41), “o prazo já iniciado, inclusive o estabelecido para a interposição de recurso, será regulado pela lei anterior, se esta não prescrever prazo menor do que o fixado no Código de Processo Penal”. Tal regra, embora trate especificamente da entrada em vigor do Código de Processo Penal, em 1º de janeiro de 1942, pode ser aplicada, por analogia, a todos os prazos que estejam em curso quando da entrada em vigor de uma nova lei processual.
De ver-se que a natureza penal ou processual de uma norma deve ser verificada de acordo com seu conteúdo, e não meramente pelo instrumento legislativo em que está contida, posto que existem, excepcionalmente, regras de conteúdo processual no Código Penal (pedido de explicações em juízo nos crimes contra a honra — art. 144 do CP — por exemplo), e vice-versa. São as chamadas normas heterotópicas. Além disso, existem leis que tratam integralmente de determinados crimes e que, em razão de sua abrangência, contêm normas de direito material e também processual, como a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas) que, além de definir os crimes e as penas dos delitos ligados a entorpecentes, prevê o respectivo procedimento apuratório.
Para se estabelecer quando uma norma tem conteúdo penal ou processual podem ser utilizados os seguintes critérios:
a) aquela que cria, extingue, aumenta ou reduz a pretensão punitiva ou executória do Estado tem natureza penal. Exs.: lei que cria ou revoga causa extintiva da punibilidade; que aumenta ou reduz a pena; que altera o prazo prescricional ou decadencial (aumentando-o ou diminuindo-o); que cria ou revoga causa interruptiva ou suspensiva da prescrição etc. Têm também natureza penal as novas leis que alteram o regime de cumprimento de pena ou os requisitos para a obtenção de benefícios como o sursis, penas alternativas, livramento condicional etc., já que interferem na pretensão executória estatal;
b) aquela que gera efeitos exclusivamente no andamento do processo, sem causar alterações na pretensão punitiva estatal, tem conteúdo meramente processual. Exs.: a que cria novas formas de citação; que trata dos prazos procedimentais ou recursais; que estabelece o número máximo de testemunhas; que dispõe sobre a forma e o momento da oitiva das testemunhas ou do interrogatório do acusado em juízo etc.
Existe certa controvérsia acerca da natureza das regras atinentes à liberdade provisória, com ousem fiança, e à prisão provisória (preventiva, temporária), pois, para alguns, têm natureza material e, para outros, meramente processual.
O ideal, entretanto, é estabelecer uma distinção. Se a nova lei, após a prática do delito, cria nova hipótese justificadora de prisão preventiva, e o agente, já na vigência deste novo dispositivo, realiza o ato que se enquadra em tal hipótese de prisão cautelar, poderá ela ser decretada sem qualquer sombra de dúvida. Ex.: a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) criou hipótese de prisão preventiva para garantir a execução de medida protetiva de urgência. Assim, ainda que o crime envolvendo violência doméstica contra a mulher tenha sido cometido antes da referida Lei, porém tenham sido decretadas medidas protetivas de urgência e o réu, já na vigência do novo estatuto, tenha desrespeitado-as, poderá ter a sua prisão decretada. Por outro lado, se o acusado está preso preventivamente e a nova lei revoga a hipótese que justificava sua custódia, deverá ser solto, uma vez que a prisão provisória se prolonga no tempo e a entrada em vigor da nova lei atinge, portanto, ato ainda em execução (o brocardo tempus regit actus aqui não diz respeito ao momento da decretação da prisão, e sim a toda a sua duração).
Já o caráter afiançável de uma infração penal e as consequências disso decorrentes devem ter por base a data de sua prática. Trata-se, em verdade, de característica inerente ao próprio crime. Assim, quando alguém comete um delito definido como afiançável, imediatamente surge o direito ao benefício e, consequentemente, à liberdade provisória. Por isso, se entra em vigor, no dia seguinte, lei que torna a conduta inafiançável, o juiz deverá arbitrar a fiança, porque o direito à liberdade era líquido e certo. Note-se que, na vigência da nova lei, não foi realizado nenhum ato processual por ela modificado. O que sobreveio foi apenas a decisão judicial que, por isso, levará em conta a lei da data do delito.
Normas híbridas ou mistas
São aquelas que possuem conteúdo concomitantemente penal e processual, gerando, assim, consequências em ambos os ramos do Direito. Em tais casos, em atenção à regra do art. 5º, XL, da Constituição Federal, a lei nova deve retroagir sempre que for benéfica ao acusado, não podendo ser aplicada, ao reverso, quando puder prejudicar o autor do delito cometido antes de sua entrada em vigor.
Os institutos da decadência e da perempção, por exemplo, são regulamentados no Código de Processo e no Código Penal. Têm natureza processual porque impedem a propositura ou o prosseguimento da ação privada e, ao mesmo tempo, penal, porque geram a extinção da punibilidade. Por isso, se uma nova lei aumentar o prazo decadencial, não poderá ser aplicada a fatos praticados antes de sua entrada em vigor.
O instituto da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n. 9.099/95), igualmente, tem natureza híbrida. Sua natureza processual é evidenciada porque gera a suspensão da ação em andamento, enquanto a consequência penal é a extinção da punibilidade, decorrente do cumprimento de todas as condições durante o período de prova. Desse modo, se a nova lei tornar maiores os requisitos para a obtenção do benefício, não poderá ser aplicada de imediato àqueles que tenham cometido o delito antes de sua entrada em vigor.
Validade dos atos anteriormente praticados
O próprio art. 2º do Código de Processo Penal, em sua parte final, ressalta que os atos praticados de forma diversa na vigência da lei anterior consideram-se válidos, ou seja, não necessitam ser repetidos de acordo com os novos ditames. Assim, quando a Lei n. 11. 690/2008 passou a prever que as partes podem fazer perguntas diretamente às testemunhas, e não mais por intermédio do juiz (como no regime anterior), não foi necessária a repetição dos depoimentos que haviam sido prestados antes da entrada em vigor de referida lei.
Direito Processual Penal Esquematizado 5ª edição, Pedro Lenza. Editora Saraiva